domingo, 30 de setembro de 2012

Nas profundezas do oceano.

Quando eu era bem pirralho, fazia meu pai me contar histórias sob medida, frequentemente corrigindo o desenrolar do enredo e os detalhes do cenário e ambientação. Eu dava o argumento e ele tinha que desenvolver o roteiro, mas eu tinha sempre a palavra final e o mantinha na linha. Afinal, quem mais sabe o que uma criança quer ouvir do que ela própria? 

Um dos meus cenários favoritos envolvia algum tipo de aventura submarina, muitas vezes passada em abismos profundos e em que o protagonista (o meu alterego mais corajoso, adulto e bem equipado) enfrentava condições extremas com aparatos tecnológicos de ponta, vivendo situações de extremo risco ao ter que lidar com criaturas fantásticas, como lulas gigantes ou tubarões de alta profundidade de seis e sete guelras. 

Minhas fontes, na época, eram dicionários enciclopédicos e enciclopédias, como o KLS e a Barsa, e os documentários sobre vida animal que passavam domingo de manhã nas TVs abertas. Percebam que falo de uma época em que TVs por assinatura eram sonhos de consumo distantes de adultos que haviam tomado conhecimento deste serviço no mercado Norte-Americano. Essas coisas não existiam no Brasil. 

Para minha sorte, a falta de fontes mais atualizadas e mais específicas, associado ao fato do meu próprio senso crítico estar ainda longe de minimamente maduro, me cegava para certas incoerências e inconsistências das tramas, me permitindo vivenciar aventuras mais dramáticas do que seriam se eu realmente pudesse levar em conta todos os detalhes técnicos envolvidos nas situações e cenários com que eu e meu pai lidávamos. Mas isso não quer dizer que eu deixasse minha imaginação correr desenfreada, pois aquilo que eu sabia eu aplicava, ou melhor, fazia meu pai aplicar na história.

Hoje com a quantidade absurda de fontes livres na internet não sei onde minha imaginação poderia ter me levado, mesmo sendo mais facilmente tolido por um lado ao me deparar com certas dificuldades técnicas, por outro, sem dúvida os cenários e temas poderiam se multiplicar e novas ideias certamente seriam fáceis de serem incorporadas. 

Talvez, simplesmente, eu ficasse entretido com outras coisas mais frívolas e mais facilmente absorvíveis para uma criança com menos de oito anos e, possivelmente, jamais descobrisse essas e outras maravilhas que hoje estão a poucos cliques de distância de cada um de nós. Mas, quem sabe, minha imaginação não teria se desenvolvido ainda mais e eu, e meu pai, poderíamos ter cocriado histórias ainda mais realistas e interessantes, uma vez que o ímpeto de contornar certas impossibilidades poderia ser ainda mais divertido e fecundo. Realmente eu não sei. O que sei é que até hoje sou fascinado pela exploração dos oceanos e tecnologias de exploração submarina, além de só ter aumentando meu interesse por criaturas das profundezas como lulas gigantes e grande (e pequenos) tubarões de águas profundas. 

 
Uma das coisas que me lembro é que tinha uma fascinação por escafandros e especialmente por trajes  'atmosféricos de mergulho' que são basicamente submarinos individuais com braços e pernas que mantém a pressão atmosférica da superfície e nos quais, por causa disso, os 'mergulhadores' não estão sujeitos aos problemas associados a pressão e principalmente a descompressão que ocorreriam caso eles usassem trajes convencionais, além de permitirem que seus usuários desçam muito mais fundo.

Estes trajes atualmente são exemplificados pelos 'newsuits' que possuem sistemas de auto-propulsão e são mais elegantes que os que serviam de ilustração nas enciclopédias e dicionários que eu dispunha. Para quem era fã, como eu, de Jacques Cousteau e do 'Laboratório Sumarino' (a versão original, e não a versão do 'Adult Swim' que só fui virar fã depois de bem adulto, claro) já era claro que mergulhar em águas profundas era algo mais complexo que demandava muita preparação e precauções extras com acertar a mistura respiratória, determinar sua duração e o tempo e taxa de subida do mergulho, quando não demandaria mesmo a espera em pequenas e claustrofóbicas câmaras de saturação e descompressão por horas, se não dias ou mesmo semanas. O trabalho em plataformas de petróleo no Brasil e no exterior que era tema de programas jornalísticos como Globo Repórter também me ensinou muito sobre isso, diga-se de passagem. O fato de eu ter um primo que trabalhava na área também sempre me inspirava e mantinha este mundo muito perto de mim.

Assim, os trajes atmosféricos eram uma excelente saída para evitar os problemas da exploração submarina tradicional, permitindo aventuras mais enxutas e rápidas em que os heróis pudessem chegar mais fundo e retornar a superfície em questões de no máximo poucas horas. Essas coisas não eram tão claras para mim quando eu era criança, mas já estavam implícitas em várias das minhas escolhas e muitas vezes já em um estado relativamente bem consciente, ainda que os detalhes não estivessem nada claros.

Admito que eu era mais displicente com a questão zoológica das tramas, embora essa fosse a minha paixão. Eu exigia não só lulas gigantes, como polvos gigantescos, muito maiores do que os conhecidos e bem mais agressivos que os que são encontrados no atlântico norte, o que fazia claramente flertar com a criptzoologia e com o lado mais 'fringe' das ciências, uma vez que estes tipos de animais ainda não passam de mitos e exageros. Eu buscava algo como os equivalentes (com esteróides) das lulas Humboldt com toda sua característica voracidade e beleza ímpar, mas bem maiores. 

Os tubarões eram outra paixão e devo muito desta paixão aos meus livros da coleção 'Os Bichos' em que através de ilustrações realistas eram retratadas diversas criaturas de várias épocas e localizações geográficas, com detalhes suficientes para deixar garotos de menos de 11 anos completamente fascinados. 


O ponto interessante é que com o passar dos anos e com minha entrada na faculdade me tornei um pouco mais cético de algumas informações ali descritas, especialmente por que eram bastante desatualizadas. Porém, para a minha surpresa assim que os documentários de TV sobre  vida selvagem começaram a se tornar muito mais comuns e canais como Discovery Channel e NatGeo, além da boa é velha BBC, começaram a se tornar mais conhecidos, acabei por descobrir que mesmo algumas das afirmações mais impressionantes daquela coleção de livros tinha uma boa base factual. Os tubarões brancos saltadores são o exemplo que me lembro melhor e que até hoje me deixam impressionado.


Muitas das informações que dispunha através dos livros eram 10 ou 20 anos desatualizadas e os registros de animais de águas profundas vinham de coletas em redes de pesca e poucas visitas com batiscafos e submersíveis a estas localidades remotas, mas isso mudou e pude acompanhar esta mudança. Atualmente, com ROVs e tecnologias semelhantes, inclusive não destinadas a pesquisa oceanográfica mas sim a prospecção  e manutenção de plataformas de petróleo, temos muito mais informações sobre essas fantásticas criaturas que estão se acumulando e que podem ser facilmente encontradas pela internet em um passeio por um site como o youtube.  


O barateamento dos equipamentos de mergulho e cinematografia submarina também permitiu vários registros desses animais em águas relativamente mais rasas em que a proximidade entre os seres humanos e estes animais é muito grande. Estes vídeos de tubarões de seis guelras filmados por mergulhadores são incríveis e existem aos montes por aí.


Todavia, ainda acho que as lulas gigantes e colossais (Architeuthis e Mesonychoteuthis) merecem um destaque especial, pois graças ao trabalho de vários cientistas, especialmente o neozelandês Steve O'Shea, estes fantásticos animais têm sido cada vez mais estudados e as informações sobre eles cada vez mais divulgadas, tanto a partir de análises de animais mortos presos em linhas e redes de pescas  (com direito a autópsias transmitidas ao vivo) ou encalhados nas praias como a partir de vídeos de exemplares ainda vivos durante a sua alimentação 'pegos no ato' por câmeras automáticas que nos dão um vislumbre maior da magnitude desses seres e do quanto temos a descobrir investigando as profundesas dos oceanos.

É bom e profundamente excitante ver 'sonhos de criança' materializando-se em fatos e conhecimento compartilhado, mesmo que não sejam tão mirabolantes e heróicos como eram minhas primeiras impressões destes temas projetadas nas histórias que fazia meu pai me contar. Mas, sem dúvida, a realidade também tem sua dose de surpresas que valem sempre a pena e muitas vezes superam qualquer ficção, mesmo a de um menino com a cabeça nas profundesas do mar.

Vivemos em período peculiar da história humana em que o acesso ao conhecimento é extremamente facilitado e no qual o próprio conhecimento é abundante, mas em que, ao mesmo tempo, existem tantas coisas a serem vistas e tantas distrações que não nos apercebemos desta facilidade e, pior,  não valorizamos as possibilidades abertas pelas novas mídias e os tesouros que estão logo na frente de nossos narizes. Literalmente falando!

Mulheres, cuidado! Estamos dentro dos seus cérebros!!


Publicado anteriormente em calmaria&tempestade em: Mulheres, cuidado! Estamos dentro dos seus cérebros!!

Não, isso não é exatamente uma metáfora, mas a constatação que DNA de células masculinas, muito provavelmente advindos de um feto gestado ou de irmãos gêmeos que compartilharam um útero, são frequentemente encontrados nos cérebros de mulheres [1]. Esta interessante descoberta foi divulgado no dia 26 de setembro, em artigo da revista PLoS ONE  [2].
Este artigo é a primeira vez que cientistas demonstram o fenômeno chamado de microquimerismo e, células do cérebro humano. O microquimerismo oc0rre quando células originadas em um indivíduo integram-se os tecidos do outro, neste caso específico no cérebro humano [1].
Essa não é a primeira vez, entretanto, que, em nós seres humanos, este fenômeno de microquimerismo adquirido naturalmente foi observado. Em outros tecidos e órgãos, diferentes do cérebro, isso já havia sido constatado. O microquimerismo fetal, bem como a origem materna havia recentemente sido relatada nos cérebros de camundongos. No estudo publicado pela revista PloS One, os cientistas conseguiram quantificar DNA masculino no cérebro humano feminino, como um marcador para microquimerismo de origem fetal, ou seja, a aquisição por parte de um mulher de DNA masculino enquanto estivesse gestando um feto masculino [2]
Os pesquisadores, usando o gene específico do cromossomo Y DYS14 como marcador e empregando a técnica de PCR quantitativo em tempo real em amostras de cérebro autopsiados de 26 mulheres sem evidências clínicas ou patológicas da doença neurológica e 33 mulheres que tiveram a doença de Alzheimer, conseguiram observar que 63% das mulheres, i.e, 37 das 59, testadas apresentava microquimerismo masculino em seus cérebros, estando este marcador presente em várias regiões dos seus cérebros [2].
De acordo com os autores do trabalho, estes dados sugerem, entretanto, uma prevalência menor (p = 0,03) e também menor concentração (p = 0,06), ainda que neste caso as diferenças sejam estatisticamente insignificantes, do microquimerismo masculino em cérebros de mulheres com a doença de Alzheimer do que nos cérebros das mulheres sem esta patologia [2].
Os pesquisadores não tem ideia se estas correlações querem dizer algo a mais. Como explica William Burlingham, da Universidade de Wisconsin, que se especializou em cirurgia de transplante estuda o microquimerismo no contexto da tolerância imunológica, e que não estava envolvido no estudo publicado no PloS One [1].
“É uma correlação”, “Mas, como um monte de coisas no campo de microquimerismo, você não sabe exatamente o que a correlação significa ainda.” [1]
O próximo passo da pesquisa de acordo com J. Lee Nelson, a pesquisador sênior responsável pelo artigo, é avaliar o microquimerismo no cérebro fetal e investigar caso as células microchimericas estabelecem ou não células funcionais nos cérebros dos indivíduos em formação [1].
Estes resultados sugerem fortemente que este não é um fenômeno raro, na verdade o microquimerismo masculino parece ser frequente e amplamente distribuído nos cérebros das mulheres [2].
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Referências:
  1. Mole, Beth Marie Swapping DNA in the Womb The Scientist News & Opinion September 27, 2012
  2. Chan WFN, Gurnot C, Montine TJ, Sonnen JA, Guthrie KA, et al. (2012) Male Microchimerism in the Human Female Brain. PLoS ONE 7(9): e45592. doi:10.1371/journal.pone.0045592

    Credito das Figuras:
    MARIA TEIJEIRO/SCIENCE PHOTO LIBRARY