quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Desacoplando

Dor e delírios e cores que rasgam a carne soltando aromas vivazes de vulvas voadoras que são, no fim, o remédio para o próprio mal inicial. Eu andava novamente flertando com a loucura, saudoso dos velhos dias de seca-garrafa em balcões sebentos de bares com cheiro de cigarro, seguido da intensidade aguda da noite, a intensidade da presença feminina no ambiente, o blecaute total das idéias, para emergir da escuridão com o gosto de terra e sangue na boca, em alguma sarjeta de alguma rua, ou no chão de brita de um bar.
O fracasso é a grande recompensa dos tolos, daqueles ousaram abrir a caixa de marchas do mundo, encarar o ridículo de tudo, das pessoas presas como engrenagens, girando uma nas outras, em busca do torque perfeito, azeitando um motor que nunca lhes trará nada, deixando suas vidas em prol de um outro qualquer que as dirige. O fracasso nos nutre, nos acolhe como uma mãe carinhosa que chama o filho ao peito e sugamos com indecisão no início e logo com mais e mais força.
Para a maioria de nós não existe escolha, temos que, de alguma forma, serrar nossas extremidades e criar dentes que nos encaixem nas demais engrenagens, não importa o quão defeituoso o mecanismo todo já esteja. Alguns podem ainda escolher, titubear perante aquele abismo mecânico, decidindo se dão o passo final ou não enquanto outros, depois que vislumbram o rosto terrível da besta mecânica, jamais conseguem entrar de novo.
A perspectiva muda, a tampa do mecanismo já não parece protetora e confortável como antes, mas sim uma opressora força a nos estrangular. As outras peças que antes víamos como feliz identificação de nós mesmos, agora se parecem monstros deformados, acusando-nos com sua presença nossa própria deformidade.
A vergonha de participar de tudo se torna incorporada de vez no nosso mecanismo, uma peça quebrada, incompatível com o resto. As mulheres são ao mesmo tempo o alívio sensual das dores, o retorno redentor ao animalismo através da atividade mais básica que perpetua as espécies há pouco mais de três bilhões de anos, e constante obstáculo para a felicidade com sua mania fútil de quererem mudar seus homens depois de fisgá-los.
Somos todos seres imutáveis, com superfícies que podem ser maquiadas e modificadas, mas uma estrutura íntima que demora milhões de anos para modificar, evoluir. E no momento o único pedido para a mãe evolução seria mãos em forma de copo tulipa, para agilizar melhor as coisas por aqui.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Animal WIN

1

Espetáculo

Ela costumava me ligar de manhã cedo, oito horas, já bêbada, do serviço dela. Eu estava dormindo, é claro, a secretária eletrônica atendia e ela desligava. Ligava de novo. Desligava. Insistia mais umas duas vezes e, por fim, deixava um recado, chorando, dizendo coisas loucas que eu realmente não conseguia entender, que o mundo era terrível e tal.
Uma hora depois o telefone começaria a tocar de novo, e eu me reviraria na cama, botando travesseiro na cara, tentando não deixar fugir aquele sonho com uma loura alienígena de cabeça piramidal. Desligava. Ligava de novo. Desligava. Por fim ela deixava outro recado no aparelho, dizendo que ouvira uma música incrível, ou vira uma foto linda, e que de repente o mundo ficara algo maravilhoso e ela estava feliz, feliz, e tinha que me ligar dizendo.
Eu não sei como os caras no serviço dela aturavam ou viam essa loucura toda, mas a vida seguia apesar disso, cheia de altos e baixos, uma montanha russa por dia.
Aquilo começou a me afetar aos poucos também, me deixar nervoso e ansioso e irritado, mas a gota d’água foi quando decidimos finalmente ir naquela peça de teatro com aquele ator famoso que precisávamos ver no palco antes que ele morresse de vez.
Compramos o ingresso com um mês de antecedência e ela falava disso dia e noite, dando piruetas, dançando uma música invisível, como uma criança prestes a ganhar um brinquedo incrível.
Chegamos lá e a peça começou e ela estava lúcida e formidável naquela noite e tudo indicava que por um tempo eu teria um pouco de paz dos acessos depressivos dela. A peça era realmente boa e o cara atuava realmente bem, e realmente morreu pouco tempo depois, mas lá pelo meio ela foi ficando com a expressão séria, tensa. Primeiro começou a chorar, depois calou-se. Aí começou a gemer e reclamar do ar-condicionado, do frio. Aí começou a reclamar das poltronas.
As pessoas já olhavam em volta incomodadas e eu tentava em vão contê-la, acalmá-la. Foi aí que ouviu algo no palco que arrebentou uma corda lá dentro da cabeça e ela desatou a chorar, alto, convulsivamente. Os olhos todos do teatro estavam agora voltados para nós, não para o palco, e eu senti que precisava fazer algo.
Eu a puxava para sair e ela se agarrava na poltrona, chorando ainda mais alto. Então, numa pausa de troca de cena, eu pensei, é agora: agarrei-a com força e a arrastei aos berros para fora do local. Não estava no preço do ingresso, mas tenho certeza que foi um espetáculo e tanto a mais.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Ritual

Eu cada vez mais me convenço de que existem quatro tipos de pessoas diferentes no mundo: as lustra-chapeleta, que ficam só chupando a pontinha sem botar o treco todo na boca, as lambe-poste, que ficam com a língua ao redor sem performar a coisa de fato, as garganta profunda, que realmente caem de boca no assunto e se especializam, dão tudo de si, e as que não chupam nem chuparam nunca.
Embora destes o grupo maior fique por conta daqueles na população que nunca meteram a benga alheia na boca, não era com eles que eu estava preocupado. Pelo contrário, para ser um investigador sério na academia eu precisava me focar justamente no grupo minoritário, garganta profunda, como no clássico filme da antiguidade.
Era meu tíquete final para escapar de vez da masturbação acadêmica e entrar em um assunto com mais profundidade, gozaria do prestígio eterno de meus pares se eu pudesse completar minha pesquisa: Metodologia Aplicada para uma Nova Visão Sistematizadora da Prática Felaciadora como Categoria Holística da Coletividade. Era uma verdadeira jogada de gênio, uma teoria que me permitia, de uma só vez, juntar a posição do sujeito moderno no mundo, a prática deglutidora, os lábios da Angelina Jolie, a garganta de Jenna Jameson, os arquétipos jungianos, a psicanálise freudiana e a termodinâmica, tudo numa teoria só.
O sucesso de meu método só pode ser plenamente agraciado ao se ver a extensão que alcançou, pois até mesmo cartilhas de alfabetização chegaram a ser impressas utilizando-se de minhas descobertas, cuja distribuição foi, de última hora, proibida, em virtude de certo coronel Feliciano que se sentiu ultrajado e entrou na justiça para proibir a obra, queixando do capítulo sobre a letra F: Feliciano felaciou com felicidade o falo falso do feroz Felício.
Foi nos últimos dias, quando eu completava minha teoria de forma final, que os estranhos sonhos começaram. Uma porra duma mulher alienígena, de cabeça piramidal, vinha e me felaciava todas as noites. Eu acordava todo melado, sem saber se se tratava de polução noturna ou uma mensagem de seres espaciais.
Por fim, ainda sobre efeito desse sonho que me assombrava, pude defender minha Tese. Pela medição feita na véspera e aquela imediatamente posterior à obtenção do título, percebi que o feito implicou no incremento automático de dois centímetros no tamanho total da minha bazuca. Ávido para comemorar fomos a uma festa noturna onde pude encontrar bela dançarina a quem eu disse: morde essa salsicha, gata!
Até hoje não sei porque disse tal coisa, e tudo a partir daí tornou-se turvo em minha memória, a não ser aquele grito ecoando nos corredores da casa e ouvidos alheios enquanto eu via aquela bela mulher com a boca ensanguentada levando nos dentes meu pedaço de carne. Agora sim eu pertencia ao clube.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Perdendo

O velho cão está perdendo os dentes. Está chegando o fim de seus dias, já não revira mais o lixo e gasta seus dias esparramado no chão em qualquer canto de sol que possa encontrar neste frio.
Ele sente o fim chegando e reage com dignidade e estoicismo, apenas fechando ocasionalmente os olhos numa tentativa de cochilo diurno. Já não passa mais as noites zanzando pelas ruas em busca do seu bando ou alguma cadela no cio. Mesmo depois de ter perdido um dos testículos numa luta com um pitbull ele ainda insistia na procura das fêmeas e as disputava com aquele olhar de quem já provou o gosto do sangue de um outro rival.
O velho cão já não pede mais comida na hora do churrasco e acostumou-se a sua ração cuidadosamente calculada para necessidades calóricas, ainda que um tanto desleixada no preparo quanto ao gosto. Ele já não late mais para o caminhão do lixo quando passa, limitando-se apenas a erguer o olhar e acompanhar de longe a movimentação dos homens que trabalham.
As crianças da casa já há muito cresceram e abandonaram o hábito diário de brincar com ele e ele já não pode mais correr por muito tempo, um desvio na coluna pressiona um nervo e a dor é inevitável. Nas noites frias os rins também doem e ele gane sofrido enquanto sonha que persegue um coelho gigante.
O velho cão já não persegue mais as galinhas, que agora não precisam mais ficar trancadas no galinheiro e andam soltas pelos fundos da casa. Ele sabe que mais dia, menos dia, o dono da casa irá pegar aquele facão afiado nos fundos, ter ele mesmo o trabalho de correr atrás de uma das penosas, cortar-lhe o pescoço, derramando na grama o sangue vermelho enquanto o corpo do bicho corre desnorteado sem um cérebro a coordenar-lhe. Em seguida ele pegará o corpo, jogará água quente e arrancará com rapidez as penas, depois fatiando e assando os pedaços, jogando ao velho cão os restos depois do almoço. Poupa-se assim a correria inútil e espera-se pelos restos e ossos já temperados pelo ensopado.
O que o velho cão não sabe, no entanto, é que o fim dos seus dias pode estar mais próximo do que ele imagina, e que mais dia menos dia o dono da casa irá de fato pegar aquele facão afiado nos fundos, mas não irá atrás de galinha alguma. Ao invés disso irá chamá-lo para uma conversa, acariciar, dizer que sente muito, que gosta muito dele e que é uma pena que tenha chegado a hora. A cabeça cortada num golpe único, morto como se fosse um cão num poema de Sig Schaitel.