quinta-feira, 28 de julho de 2011

Balé em sangue

Um esforço supremo e final antes da morte. O rosto alegre do público acompanhando a dor, o sangue, o medo. A bailarina tem que manter a posição antes que o sangue se esvaia de vez, antes que a luz se apague e a platéia exploda em aplausos.
O desmaio, no entanto, se avizinha. Não um desmaio qualquer, mas o desmaio final, para nunca voltar. A ponta do pé em carne viva já, rígida, mantendo em si todas as forças e tensões friamente calculadas e medos ardentemente deslocados, o corpo se contorce e dói para proporcionar aquele prazer, carne contra carne, espremendo, forçando, pedicando passagem. Uma espécie de frieira se espalha e alastra entre os dedos, apodrecendo a carne, trazendo a dor a cada movimento mínimo, como uma agulha em brasa que queima e dilacera.
O espetáculo é bizarro, ela sabe, ainda assim aceitou seu papel e se preparou e treinou a vida inteira para estar ali, morrer em frente aquele público em seu momento de auge e êxtase. As pernas são perfeitamente modeladas, fortes para o salto e flexíveis para os amplos arcos e movimentos. As coxas sussurram palavras doces enquanto a melodia da dança toca, enaltecendo os quadris e o ventre, que giram de forma inebriante. Os braços são longos como se pudessem alcançar as paredes e os queixos caídos dos presentes. O rosto é frio e rígido, como de quem executa uma curva em alta velocidade, um lançamento de foguete, ou qualquer manobra de alta precisão, deixando escapar de vez em quando um sorriso de malícia, que acompanha o rebolado.
Ela sente a última gota de sangue cair e sabe que não há mais como adiar a morte. Respira o ar que só o pulmão dos mortos sabe inalar e salta ao ar com energia irreal, impossível, como um zumbi a bailar em comercial de lingerie. Abre as pernas em arco exibindo a forma perfeita do salto final.
O povo aglomerado explode em aplausos e gritos e brados e pulos e ímpeto e emoção enquanto aquele corpo se lança ao ar para cair no piso já sem vida, inerte, como um saco de batas ou trinta quilos de picanha prontos para o churrasco. O aplauso se estende por um momento de eternidade comemorando aquela transcendência da arte, a transição artística da vida para a morte, a poça de sangue que escorre pelas tábuas do palco alimentando as crianças que brincam embaixo.
Dou a última tragada em meu charuto cubano e confiro a máquina fotográfica para ver se as fotos ficaram boas e tudo está perfeito. Fotos em tom vermelho sangue, melhor impossível. Dará uma ótima sessão de slides para a família.

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